quarta-feira, 9 de julho de 2014

Olhar

Há-de vir um tempo, novo ou não, em que olhar a Deus voltará a ser um acto de teimosia. Agora, procuram-no no intervalo, na interrogação, na dúvida. Não é pleno, nem certo, nem directo. O Deus castigador, pai eterno, tirano, foi substituído por benevolentes deuses ocidentais, inspirados por um zen new age que até o dogma católico abraça. "Deus é amor, é perdão", não está assim tão longe dos modos compassivos com que os deuses orientais (mais espíritos do que deuses, almas na natureza) olham para os humanos. Não precisam de ir ter com Deus, nem esperá-lo, porque na tentativa, na aceitação dos limites humanos, se encontra essa nova divindade, que dispensa orações, castigos, penitências. Chega-se a Deus pela reflexão, pela razão, e pela vida que tenta encontrar virtude no meio do caos. Não há Inferno já, apenas a ausência de Deus. Como se quem não acredita estivesse na verdade condenado a não viver. Não é esse o pior dos infernos?

terça-feira, 8 de julho de 2014

Uma recordação indecente

Chega o verão, regressa a luz clara e límpida. A que hoje chega diferente, e traz com ela promessas, mas também a vaga da memória. 
No outro dia, não sei a propósito de quê, uma recordação começou a bailar na cabeça, e foi ficando, até obrigar-me a pensar sobre ela, reescrevendo-a, inventando o que nunca aconteceu.
Eu teria talvez uns quatorze anos, e no verão ia de bicicleta para a praia, eu e a malta toda lá da rua, cinco ou seis, pela estrada do campo. Levávamos canas de pesca, cigarros comprados por um irmão mais velho, o anseio de um verão infindável. Dez quilómetros, da rua até à praia, pelo caminho de terra batida que (ainda) acompanha o rio da aldeia até à foz. Umas vezes íamos para a praia batida pelo mar, outras para a praia fluvial, uma reentrância perto da boca que unia a água doce à salgada, uma baía no rio que enchia na maré cheia e mostrava lodo e detritos quando a água cedia. Chegávamos lá depois de almoço, a água pelos ombros, e mergulhávamos. Secávamo-nos na areia, canas secas por todo o lado, restos de redes emaranhadas de lixo, as ondas batendo ao fundo e subindo pelo rio, trazendo aos nossos pés o derradeiro assomo de movimento produzido pelo mar. 
Ela era irmã de um amigo, e seria mais velha do que nós dois anos. Foi apenas uma vez connosco - não sei porque não voltou. Não era bonita. Pele escura, muito morena, cabelos negros. Mas a promessa da idade já se cumprira no corpo. Usava um fato de banho azul claro, cavado nas coxas. E quando saiu da água e se sentou ao nosso lado, a púbis muito preta colava-se ao tecido azul claro, numa transparência que cruzou mais de vinte anos num instante, este em que a recordo sem nunca mais a ter visto, desde essa vez (ou outra depois, talvez?). Meteu conversa, perguntou-me coisas. Sorriu muito, do modo nada esquivo que eu ainda não tinha aprendido a detectar como sendo de sedução. Por isso, fui-lhe respondendo mal conseguindo desviar os olhos do triângulo púbico. Quando ficámos os dois sozinhos, tocou-me ao de leve no braço, levantou-se e voltou a mergulhar, sem mais. Não voltámos a ficar os dois sozinhos.
Agora não é mais do que um rosto desfocado, um corpo pleno, e a memória de um desajeitado desejo de adolescente. Uma recordação indecente, como no livro de Agustina Izquierdo.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Fraude

Esconder a mão ganhadora na manga e perder a oportunidade de a usar; sem o timing certo, nem a fraude consegue salvar.

O tempo em que festejavam os meus anos

Nunca consegui reunir muitas pessoas no meu aniversário. Um grupo restrito, amigos poucos, os dedos de uma mão, esse tipo de coisas. Havia o constrangimento social, que me obriga a celebrar um dia que poderia ser como outro qualquer, mas também a alegria, claro; a alegria de estar reunido com pessoas que gostavam de estar ali, com pessoas de quem eu gostava.
Depois, vieram os anos, o lento peso do tempo sobrecarregando a vida. O grupo tornou-se ainda mais restrito, a família apenas - os amigos foram-se ou fizeram uma pausa, eu deixei de festejar e o sentido que procurava atribuir a uma data como outra qualquer transformou-se. 
Mas os anos voltaram a passar, e numa idade a que gostam de chamar de curva da vida (como se esta fosse uma perfeita circunferência), penso se não será o momento de voltar a celebrar com esse grupo mais largo (ainda e sempre restrito) de amigos. Não é importante? Talvez seja. Não estou já na idade de pudores e orgulhos juvenis, os anos tornaram-me um aspirante ao burguês que durante muitos anos dizia não ir ser. As coisas mudam.

(As pessoas não, House continua certo. Mas se as coisas mudam, as pessoas parecem mudar com elas, quando na realidade apenas revelam ser o que sempre esteve lá, em forma de crisálida.)

No tempo em que festejavam os meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto. Agora, que organizo os meus próprios aniversários, talvez essa felicidade, o desconserto da infância, pura e perdida no desconhecimento de si mesma, não passe apenas de uma memória fabricada. Agora tenho outra felicidade, frágil, presa por arames, sujeita a imponderáveis, arbitrariedades, ao seu final fixado no eixo do tempo. Como não posso ter a original, vou aproveitando a cópia. Mas, oh, há breves momentos em que ela vale tanto a pena. Vale mesmo. 

terça-feira, 1 de julho de 2014

Antes

No fundo, é como o homem que, lamentando-se da vida que leva, continua a correr em volta de uma árvore seca, trazendo uma corda atrás, enredando-se cada vez mais na trama que o prende à árvore. Julga a cada passo corrido que entreviu ao longe uma paisagem diferente, ou no céu uma nuvem que nunca por ali passara, mas acaba por descobrir que afinal simplesmente deu mais uma volta de trezentos e sessenta graus e voltou ao ponto de origem. Poderá correr muito, até ao fim dos tempos, mas não sairá do mesmo lugar. Mas antes que tal aconteça, deixará de poder correr ou olhar, capturado no seu próprio movimento. Se tivesse ficado parado, cativo da sua impossibilidade, da sua indiferença, viveria.

Não

Desde há uns tempos que a mão conduz as minhas frases para o "não". Começo e é essa a primeira palavra que escrevo. Como se o mundo começasse por uma negação, um espaço em branco que precede e devora tudo o que se seguirá. Depois corrijo e o "não" desaparece. Mas está sempre lá, como se ao meu lado se sentasse Bartleby, uma persistente lembrança de que por vezes é preferível ceder a esse "não". Bartleby resiste a ser, existindo como negação. Tão evidente que nem a ironia dessa evidência me tranquiliza. 

Aubade

I work all day, and get half-drunk at night.   
Waking at four to soundless dark, I stare.   
In time the curtain-edges will grow light.   
Till then I see what’s really always there:   
Unresting death, a whole day nearer now,   
Making all thought impossible but how   
And where and when I shall myself die.   
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.

The mind blanks at the glare. Not in remorse   
—The good not done, the love not given, time   
Torn off unused—nor wretchedly because   
An only life can take so long to climb
Clear of its wrong beginnings, and may never;   
But at the total emptiness for ever,
The sure extinction that we travel to
And shall be lost in always. Not to be here,   
Not to be anywhere,
And soon; nothing more terrible, nothing more true.

This is a special way of being afraid
No trick dispels. Religion used to try,
That vast moth-eaten musical brocade
Created to pretend we never die,
And specious stuff that says No rational being
Can fear a thing it will not feel, not seeing
That this is what we fear—no sight, no sound,   
No touch or taste or smell, nothing to think with,   
Nothing to love or link with,
The anaesthetic from which none come round.

And so it stays just on the edge of vision,   
A small unfocused blur, a standing chill   
That slows each impulse down to indecision.   
Most things may never happen: this one will,   
And realisation of it rages out
In furnace-fear when we are caught without   
People or drink. Courage is no good:
It means not scaring others. Being brave   
Lets no one off the grave.
Death is no different whined at than withstood.

Slowly light strengthens, and the room takes shape.   
It stands plain as a wardrobe, what we know,   
Have always known, know that we can’t escape,   
Yet can’t accept. One side will have to go.
Meanwhile telephones crouch, getting ready to ring   
In locked-up offices, and all the uncaring
Intricate rented world begins to rouse.
The sky is white as clay, with no sun.
Work has to be done.
Postmen like doctors go from house to house.

- Philip Larkin -