sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Passados

Gosto de inventar passados.
Uma espécie de mentira, menos inocente
do que qualquer mentira branca,
mais importante do que as mentiras maiores,
as que se sopram na sombra.
Não conto histórias, não tenho imaginação para tanto.
Mas invento passados,
adianto ao passo do tempo uma volta mais,
e quando me lembro desses passados
que inventei, chego a acreditar, pelo menos
tanto quanto julgo acreditar que os outros me acreditam.
Um jogo perigoso, ensaiado às cegas entre
o fio das expectativas e a ilusão,
um jogo tão arriscado como um verso hermético,
preso das suas remissões e balanços,
das segundas leituras e das legítimas conclusões.
Invento passados e saio do esquema
simples aprendido na escola – não
mentir, nunca mentir – e que cedo percebemos
ser um engodo, um truque para submeter espíritos,
para que aceitemos as derrotas que nos esperam.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Estado da arte

Diferença

Não há único momento da vida que seja repetição de um anterior. Pode haver qualidades, motivações, palavras idênticas, mas nunca o mesmo acontecimento. Quem se entrega à rotina dos dias (quem não se entrega?) sabe que cada viagem empreendida exactamente à mesma hora do dia não é exactamente igual. Quando desaprendemos de viver, o tédio começa a instalar-se. É necessário voltar a olhar para os momentos similares como desiguais. Sentamo-nos no mesmo lugar na segunda carruagem do comboio, mas são outros passageiros que vemos. Aquela mulher que lê uma revista não é a mesma que ontem olhava discretamente para o reflexo na janela, ajeitando o cabelo. O homem brincando nervosamente com as teclas do telemóvel ontem não apanhou este comboio, ou talvez tenha apanhado mas escolheu outra carruagem. A paisagem não é igual. Ontem a chuva escorria arrastada pela velocidade, hoje uma clara luz atravessa o vidro, inundando os lugares e aquecendo os passageiros. Quando o comboio chegar à estação e as centenas de pessoas desembocarem, o rio será diferente do que foi ontem, do que será amanhã, do que será durante todos os dias que o comboio parar na estação quotidiana. O que trará mais felicidade, maior consolo ao coração? A familiaridade da repetição ou a diferença dos dias, à espera que sejam admirados cada um por si, sem qualquer grau de semelhança com o anterior ou o próximo? Que queremos nós, a ilusão da repetição ou a crua e bela verdade da diferença?

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Momento

Há quem viva por quem não quer viver.
Um homem de noventa e um anos procura com curiosidade um livro. Passos titubeantes, voz rouca e sumida, o peso da idade. Mas uma vivacidade clara no olhar, que o obriga a alimentar a curiosidade e a vontade de continuar a aprender. Sem hesitação, sabe (mas não diz) que poderá ter pouco tempo para os livros que tem em casa. Estantes cheias de sabedoria acumulada que não será apreendida. Por ele, talvez por ninguém mais.

(Os alfabarristas são os abutres dos livros. Esperam a morte do leitor e atiram-se aos despojos, comprando por tuta e meia preciosidades a filhos desprevenidos e multiplicando o valor material por mil. Matam a alma do livro, transformando-o em mero objecto, coleccionável e transacionável como um bem efémero.)

Enquanto por cá está, caminha, anda, e vê e procura o conhecimento. Não interessa o que saberá ou o que nunca poderá saber. Como no resto, importa manter vivo o caminho, os passos que o percorrem, em fundo a ténue chama da possibilidade, do ser.
Há quem viva por quem não quer viver. Quem recusa a sede do conhecimento nunca saberá o que é viver.

domingo, 7 de setembro de 2014

Uma margem de rio

De partida, ele disse:

“não há momentos absolutos
nem resguardos de verdade em cada conversa
se acreditares em mim e na minha religião
obscura,
sem deuses ou condenação perpétua,
mistérios ou amor infinito.

A verdade é uma garra que te persegue
mas o rosto que te ofereço não precisa
da sua chama e da ameaça,
oculta-se na dobra
de um lençol trocado pela manhã,
antes do café quente despertando o dia.

Sou o deus vivendo nos teus passos
a luz derramada nos teus medos,
a minha alegria estremecendo nos ossos,
pelo sangue, na saliva.
Amor, não o exijo,
apenas uma entrega, nítida como
uma margem de rio assoreada.

A ti, o ser que mata o nada.”