domingo, 28 de junho de 2015

Caderno de encargos (5)

Todos os dias, o sono trazendo a cegueira aos olhos, hesito na saída. Trago às costas o peso do cansaço diário. Julgo no entanto ser o único a ver o que por dentro cresce. O hábito antropológico de encontrar nos olhos dos outros a impossibilidade material, um muro espesso. Nos homens escamas crescem na pele; a carne sólida, as mãos soltas numa insuperável imobilidade, na ausência do álcool. O corpo capturado num movimento violento, a arte da prisão. A sombra irrompe dos olhos e torna-se a roupa suja que cobre o corpo. Não sou como esses homens que vão morrendo do cancro que lhe corrói as entranhas, mas sei que cedo ou tarde a luz se dissipará como uma voz na distância. Não preciso de enfermidades, vícios, tédio e loucura - tenho a modorra quotidiana, plena de razão absurda, como um sol ofuscando os caminhos que conduzem ao esquecimento. Uma membrana húmida alastra pela carne, e num momento tanto sou o fio de água que restou na poça como o fantasma de um pássaro gravado na retina. Atiro-me contra a cerca, na esperança de que a sólida gramática da morte me acorde. Mas o gancho que me puxa de volta ao presente, metafórico e sublime, prende a minha carne ao que não poderei ver. O sono é como um estranho que não deixo entrar em casa. Talvez não me reste mais do que isso: resistir ao imparável embate do tempo.