quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Caderno de encargos (7)


Amigos, gostava de os ter vivendo a meu lado, como os fantasmas que são. Não aqui em casa, ocupando os lugares por onde me vou esquecendo, mas numa casa ao lado, a dois metros de distância, para que os pudesse convocar sempre que precisasse. Não quando andasse perdido nas tais profundezas de que fala o poeta 
(qual poeta? algum fala de profundezas sentindo-as mesmo, o ar tão distante como a palavra está de um surdo-mudo? saberão mesmo o que é cair, sem conhecer o fim à queda? ou fingirão apenas dor, e voz, e sofrimento, deitando sobre o papel a sombra que não guardam?)
não quando andasse tão errado sobre o que me dizem que achasse que cada corredor leva sempre a uma porta. Queria poder chamá-los quando cair fosse um relâmpago que me sacudisse de alto a baixo, uma permanência. E que não encontrasse o fio eléctrico que a sustivesse. Queria poder abrir-lhes a porta de casa, acender a luz como um terremoto e deixá-los entrar no corpo que desabito. E eu fosse um fantasma por momentos, a minha pele cobrindo da cabeça aos pés carne, nervo, músculos. E eu fosse um fantasma e entrasse em casa deles, passeasse pelas salas e descobrisse nas estantes livros de que nunca ouvira falar, títulos novos, filósofos desconhecidos. Que não reconhecesse o cheiro dos meus amigos, nem o eco das vozes abandonadas, nem as fotografias sujas de pó enfeitando a cómoda da sala. Que abrisse a janela do quarto e a luz entrasse, composta de moléculas acabadas de nascer, e no meu corpo de fantasma essas moléculas desenhassem uma alegria antiga.
E depois regressaria a minha casa, e eles à sua. Regressaria sabendo que sempre que precisasse poderia trocar de corpo e voltar, como uma mariposa reencontrando o seu casulo.