domingo, 22 de março de 2015

Caderno de encargos (memento)

Um dia fora de tudo o que me interessa. Um dia rodeado de livros mas sem pensar no que eles guardam – ou carregam. Escolhi a vida que tenho por subtracção, não por soma. Fui descontando ao desígnio as oportunidades, deixando que as opções se esbatessem antes que tivesse a possibilidade de verdadeiramente escolher. Não me posso queixar do que tenho; talvez não tenha nada de que me possa vir a arrepender. Mas essa desilusão, esse desencanto, essa permanente dor surda que me deixa de sobreaviso, esperando o que não pode ser esperado, acabando por nunca acontecer. Mais do que medo, um medo de que algum dia submeta ao vazio as horas que me foram dadas viver. E que acabe por perder no confronto as alegrias, subtis e efémeras, as que apenas se reconhecem quando se recorre à memória. E volto ao mesmo, a ferramenta que impele a escrita, quando à razão submetemos o julgamento das emoções, do que fomos sentindo, até chegarmos ao ponto em que apenas as palavras podem definir de forma nítida essa brevidade de uma sensação. A memória sobrevive, e talvez apenas ela nos permita continuar a fazer. Li que o mecanismo que nos permite prever o futuro é semelhante ao que nos faz recordar. Lembrar como se soubesse o que a manhã me trará, pensar no que serei apenas divisando o que agora sou, na impossibilidade de imaginar um outro. Um regresso à noite e a tudo o que me interessa. Algum consolo. Ausência de mim, e do corpo.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Caderno de encargos (arte poética 1)

O que nos chega aos olhos, e é processado, transforma-se no que nunca foi: pasto de palavras, metáforas que reduzem a cinza a matéria e o sonho, máquina produtora de redundâncias.
O que é está além do olhar que o vê, existe apenas fora do mundo e das palavras que o constroem. Há portanto três planos distintos, três camadas de realidade, e sabemos que nenhuma delas é real, nem material. O que vemos é tão tangível como o que pensamos, e o que pensamos é tão furtivo como o que dizemos. E depois decidimos dizer por outras palavras, como se, digamos, fossem duas estrelas de neutrões sugando tudo em volta, e no centro da sua dança pulsasse um vazio centrífugo por onde escoa a realidade. O escrito habita nesse plano intermédio, a zona atómica onde duas folhas de árvore intersectam a luz enganadora, vive na rocha onde assentam os pés, o lugar no qual começa a nascer a verdade, o que satisfatoriamente substitui a realidade.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Felicidade suburbana

A noite próxima, quando a gente chega a casa, cai uma calma sobre o bairro que limpa as ruas e os espíritos. Não falo de silêncio, nem de sono, mas de uma serenidade habitada pelos ruídos do costume, pelos hábitos diários e as urgências da necessidade. O pão que é preciso comprar na loja da esquina, ir buscar os filhos à escola, preparar o jantar de janela aberta, o cheiro a refogado enchendo os ares. As conversas de quem encontra o vizinho e precisa de alimentar os laços e as ilusões de proximidade enquanto se vai afastando, recuando, recolhendo ao engano do lar. O ronco dos carros a serem estacionados, o barulho dos pratos e das chávenas no café da esquina, o vento trazendo pela janela o odor distante de fumo que vem das vivendas. 
Há medos que espreitam, como sempre, todos os dias, todos os medos emboscados no caminho, e os poucos segundos que se transformam em minutos, minutos imersos nessa proximidade quotidiana e fingida, são as bóias que nos mantêm à tona. Nadamos entre escolhos, e vamos ao encontro de quem nos reconhece, mesmo que não saiba o nosso nome, nem de que sonhos somos feitos. Entre escolhos, resgatando connosco a verdade que vamos fabricando, chegamos a ilhas que não aparecem no mapa. 
A noite empurra o dia para o passado. Somos como um velho disco riscado, de cada vez que tocamos mais ruído de fundo produzimos. Mas as mãos que retiram o disco da capa, que puxam a agulha e a deitam devagar sobre os sulcos, as mãos, reconhecemos nelas o que somos, o seu cheiro, a pele porosa por onde se infiltra o amor. A mesma canção tocada tantas vezes, e nunca nos cansamos dela. Talvez um dia o bairro faça sentido. Cá dentro, a isso nos conduz, um sonho de quem nunca encontrou o lugar certo para dormir. 

segunda-feira, 9 de março de 2015

Caderno de encargos (2)

Perder a linguagem. De súbito, deixar de entender que o um, a unidade, é a primeira forma, o início, o objecto a partir do qual nasce o sentido, o sentido em si. Uma amálgama de restos de palavras, princípio de frases, que vai tentando ordenar, estabelecer alicerces, construir um tronco à volta desse princípio. Do um nasce o entendimento, do eu tudo o que vem. O mundo não existe fora das palavras que o descrevem. O horror é o muro da linguagem abater. Puro desespero, quando o sentido do um, do eu, se escapa, como um pássaro doido que anseia a liberdade. O ser não é sem as palavras que o fundam, e quando estas falham apenas lhe resta não ser. 
Foi um tiro na noite, a caminho do sono. O mundo fugiu-lhe das mãos, acrescentando um grau mais ao desespero. Um tiro como uma ave voando, atingindo o nervo daquilo que é. O coração dispara com a força do tiro, a noite arde-lhe por dentro das pálpebras, e nenhum calor ou conforto, humano ou material, o salva. A noite, que apenas existe porque ele a pensa com palavras - emergindo do caos das imagens - desaparece, e ele é apenas um corpo enrolado no abismo, olhos queimam e mãos repetem no escuro os gestos que permitem que o sentido recupere a respiração. Debaixo de água turva, densa e negra, tenta ser. Tudo se revolve como um movimento de entranhas, precedendo a agonia. E vai, parte por aí, caos puro, sem uma palavra que o defina, e depois regressa, prendendo o crânio num tumulto de loucura. Sabe que apenas o poderá resgatar essa desvairada corrida, e por isso desata atrás do ténue rasto de verdade e de razão que as palavras guardam. Um rastilho na sombra e ele não tem o lume que o acenda, procura imerso na angústia a luz, a luz.
Agora que o recorda, as palavras são de outro, não dele. E parece nunca as ter vivido, apesar das imagens, dos vislumbres de um outro mundo. Ele não é quem perdeu a razão, é quem a cada frase a recupera. Ainda que na verdade ela deslize, desapareça, não seja mais do que pó pairando no fim de tarde. Vai perdendo, vai ganhando, sem nunca conquistar o território. Talvez a língua não baste, não seja a arma certa. Mas é a única que tem. A única. 

sábado, 7 de março de 2015

Caderno de encargos (1)

O que fazer com um morto? O que fazer com as suas mãos, os seus olhos, os seus gritos? O que fazer com o seu corpo, para além de escondê-lo do mundo? Levá-lo a passear, mostrar-lhe as vistas? Pegar nas suas memórias e revirá-las, transformá-las no sonho que nunca se chegou a ter? Ou abrir-lhe o ventre, com a lâmina exacta, e expor-lhe as entranhas, como um peixe na lota? Escondemos a elegância do desaparecimento como se esconde guloseimas às crianças, sabendo que as crianças, mais cedo ou mais tarde, as irão encontrar. Porque o desaparecimento consiste em estar ali sabendo que o vazio que ocupará o lugar do corpo arde no horizonte, um devastador incêndio. Tão devastador que queima o presente e as suas ilusões, as suas certezas com sabor de algodão doce.
O que fazer com a voz de um morto, a que nos canta na noite as canções que recusamos ouvir? Julgamos saber que a música é um eco do que em tempos conhecemos, mas na verdade é apenas um sopro de sereia que conduz o barco em direcção aos penhascos. A música que nos chega dos mortos, as histórias que nos cantam, brilham com o cheiro da urze que renasce todas as primaveras nos montes. Mas depois apagamos as recordações como se fossem as linhas escritas a lápis no caderno de infância. E nas aparas de borracha vive o que vivemos, partículas que se desfazem na ponta dos dedos, transportadas na concha das mãos e atiradas para o lixo. E depois são recolhidas pelos homens que limpam as ruas pela noite.
As mãos de um morto, os dedos certos um dia, agora são galhos secos encolhidos na sua respiração. Pele sobre ossos, nódulos de carne ainda, sangue acumulado sob as unhas, brilhando na sombra de um dia. Traçando uma linha longitudinal do alto da cabeça ao vértice dos pés pousados no aço gelado, e abrindo, rasgando, escavando, vê-se o que se viu, o que se perdeu e o que não mais poderá ser visto. O rasgo rescinde da cabeça aos pés, e por ele se infiltram os caminhos desviados, as hesitações de percurso, os ódios acumulados como fuligem no coração, as trapaças de amor onde a alegria caía, os pedaços de papel com todos os nomes que não puderam ser carregados para a morte, as fisgas que o medo usou para derrubar uma e outra vez, vezes sem conta, o ar que em cada queda foi insuflado no corpo e a luz a cada manhã recolhida apontando o dia, a velocidade e o movimento impelido por ela, contra a inércia a impulsão, como um arco sobre o mundo. Com o sangue vai tudo, tudo o que apenas o morto lembra e agora já não lembra,
e alguém por ele o mata outra vez. Não sabemos o que fazer com a nossa imagem no futuro. E não reconhecemos no presente suficiente força no reflexo que nos olha de volta para nele fixarmos o eixo do abismo que ali está, a um passo apenas. Fazemos com um morto o que não podemos fazer por nós: esquecemos.