domingo, 28 de junho de 2015

Caderno de encargos (5)

Todos os dias, o sono trazendo a cegueira aos olhos, hesito na saída. Trago às costas o peso do cansaço diário. Julgo no entanto ser o único a ver o que por dentro cresce. O hábito antropológico de encontrar nos olhos dos outros a impossibilidade material, um muro espesso. Nos homens escamas crescem na pele; a carne sólida, as mãos soltas numa insuperável imobilidade, na ausência do álcool. O corpo capturado num movimento violento, a arte da prisão. A sombra irrompe dos olhos e torna-se a roupa suja que cobre o corpo. Não sou como esses homens que vão morrendo do cancro que lhe corrói as entranhas, mas sei que cedo ou tarde a luz se dissipará como uma voz na distância. Não preciso de enfermidades, vícios, tédio e loucura - tenho a modorra quotidiana, plena de razão absurda, como um sol ofuscando os caminhos que conduzem ao esquecimento. Uma membrana húmida alastra pela carne, e num momento tanto sou o fio de água que restou na poça como o fantasma de um pássaro gravado na retina. Atiro-me contra a cerca, na esperança de que a sólida gramática da morte me acorde. Mas o gancho que me puxa de volta ao presente, metafórico e sublime, prende a minha carne ao que não poderei ver. O sono é como um estranho que não deixo entrar em casa. Talvez não me reste mais do que isso: resistir ao imparável embate do tempo.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Caderno de encargos (4)

Não falamos do que nos interessa, perdemos o que nos trouxe aqui, as sombras estão presas no passado. Na conversas mentimos mais do que a marca desse rosto no espelho, ou a mancha deixada na mesa pela maçã roída de domingo à tarde, jornais de há três meses que ainda não estão amarelos e ecos de canções na rádio de um tempo antes de nós. Chama-se inventar uma história para caber no coração, ir criando as curvas apertadas que temos a certeza de nos terem trazido aqui. Ou acumular redundâncias numa caixa de cartão que guardamos na prateleira de baixo da mesinha de cabeceira, papeis velhos, recibos amarrotados e os comprimidos que salvámos para aquela ocasião em que o abismo nos olha de volta. 
No nosso medo calamos as certezas, mas o cansaço debate-se entre mãos, é uma montanha que não conseguiremos conquistar, nem que a vida durasse o suficiente para aprendermos a arte da escalada, do alpinismo, da poesia. Contra os olhos entregamos o resto de sangue que nos anima. E nas veias um denso arado abre os sulcos por onde há-de escorrer o presente, princípio de bolor e esquecimento.  
Não, de todas as palavras possíveis, é a que mais vezes nos aconchega. Uma conta-corrente que vem de muito longe, debitando possibilidades esgotadas, os futuros que arderam sem nunca terem chegado a existir, os que nunca vimos e no entanto viveram dentro de nós com a força suficiente para nos lembrarmos deles, o ímpeto da onda antes de ser cortada pela língua de areia para onde se atira. 
Não falamos nunca do que nos interessa, e não interessa saber porquê. Erramos o alvo, sempre, com fulgor e alegria - no intervalo da necessidade, na dobra da razão, habitamos. Sabemos o que somos aí.