sexta-feira, 22 de abril de 2016

Soneto coxo com cães

Falei dos cães pretos e sabias que falava
de metáforas. Dia a dia, vais somando
bizarrias, sabendo que amestrando
esse desejo, insidioso, não se salva

nem um gato nem um morto, esperava
que compreendesses: derrubando
a luz densa, de um golpe, misturando
sal e dor, a tal frase que eu estimava,

talvez nos retomemos, oh perdidos
que estamos há tanto, barcos soltos
enfrentado mar alto, empurrados

pelas ondas, somos assim sacudidos,
maré certa, hora definida, revoltos
vamos, loucos, certos, derrotados.

sábado, 9 de abril de 2016

As meninas, segundo Vélazquez

As meninas espreitam por cima das cabeças.
O pintor olha para nós,
mas as pessoas estão à nossa frente e mal
conseguimos perceber o sorriso irónico -
no momento seguinte ele é sério e
posa para a história, para todos os dias
em que as portas do museu se abrem e recebem
os escolhos da modernidade, turistas
de máquina fotográfica em riste
roubando a alma das meninas.

Talvez até já tenha sido escrito
um poema sobre isto - mas esse poema
não nos tinha aqui, olhando de volta
aquele centro magnífico de onde irradia
essa majestade de outrora, o corpo afastando-se
da tela, as damas e os anões da corte
num êxtase de inutilidade pomposa,
cão aos pés, derreado pela servidão
aos monarcas capturados pela sombra de um reflexo,
o rei espreitando a cena, curioso secundário,
e a imagem multiplicada do artista, sob
a ombreira ao fundo e em todos os quadros
dos seus mestres
cobrindo as paredes até ao tecto.

Mil vezes os turistas se repetem,
e aquele gesto solene do pintor e
os enigmas ocultos pela hábil mão
não são agora mais do que mil fotos perdidas
em discos rígidos de computadores,
vazio imaterial, presença estilhaçada.
Nada. Nada mais que nada.